quinta-feira, 30 de julho de 2009

Rapidinhas: Minha bela meretriz, novelão em CinemaScope e mulheres de Bergman


Gigi


Gigi, 1958 – Dirigido por Vincente Minnelli


Na cerimônia do Oscar de 1959, Gigi conseguiu a façanha de levar para casa os nove prêmios para os quais havia sido indicado, incluindo o disputado Melhor Filme e ainda uma estatueta especial para Maurice Chevalier. Fruto da colaboração do diretor Vincente Minnelli e do lendário produtor Arthur Freed, este seria considerado o último grande musical produzido pela MGM (e de fato, o último que rendeu dinheiro). Nos anos 60, o gênero continuaria forte nas telas grandes, mas na forma de adaptação de espetáculos da Broadway (cujo ápice foi Amor Sublime Amor em 1961). Na verdade, Gigi nasceu como uma forma de levar a peça My Fair Lady aos cinemas (algo que seria feito de fato em 1964 pela Warner), trazendo a bordo Alan Jay Lerner e Frederick Lowe, os compositores da obra, para escrever o roteiro e compor as canções baseados no conto da francesa Collette.


Gigi atua como uma ponte entre os clássicos e já então considerados ultrapassados musicais da Metro e as suntuosas adaptações da década a seguir. É possível sentir uma nova influência a medida em que as grandes peças de dança características das películas de Gene Kelly e Fred Astaire são substituídas por números musicais integrais para o desenvolvimento da narrativa. Isso faz com que as canções de Gigi representem não apenas um dos melhores trabalhos da dupla Lerner e Lowe como também de qualquer filme musical. As letras inteligentes e bem-humoradas das composições refletem as características dos personagens e atuam como importantes momentos de exposição dos mesmos. Apesar do tom leve, a história esconde uma camada mais sombria – Gigi (Leslie Caron), jovem parisiense de classe baixa é treinada por sua tia para ser uma cortesã para o alto escalão francês. O ponto de conflito é que ela acaba se apaixonando por Gaston (Louis Jordan), o playboy que deveria ser o seu primeiro cliente. A complexa história de amor enaltece a película e faz com que ela fuja da artificialidade de outros filmes do gênero. Tudo isso reforçado pelo uso de locações da verdadeira Paris, suntuoso design de produção e figurino de Cecil Beaton e da radiante atuação de Leslie Caron. Só mesmo Minnelli poderia se safar fazendo um musical sobre prostituição sem mencionar a palavra uma só vez (e ainda levando um Oscar). E impossível não pensar duas vezes quando um Maurice Chevalie de 60 anos começa a cantar Thank heavens for little girls...


Disponível em DVD pela Warner em versão mutilada para o formato 4x3. Recomendo o ótimo Blu-ray restaurado lançado recentemente nos Estados Unidos.


A Caldeira do Diabo


Peyton’s Place, 1957 – Dirigido por Mark Robson


Filme baseado em um romance escrito por Grace Metalious que se tornou best seller por abordar temas como sexo na adolescência, incesto, aborto e rebeldia juvenil - é uma longa lista! O desafio aqui é levar tudo isso para as telas em uma época em que o código de censura (the Hayes Code) ainda dominava Hollywood, algo que o filme consegue com moderado sucesso. Indicado para 9 Oscar (sem levar nenhum), A Caldeira do Diabo possui um parentesco próximo com os melodramas produzidos pelo diretor Douglas Sirk no mesmo período, mas sem a classe e a sofisticação dos filmes do mesmo. O roteiro não deixa esconder as origens pulp do livro, com muitas passagens parecendo terem sido extraídas diretamente de romances populares vendidos para jovens adolescentes.


A narrativa se assemelha à À Sombra de uma Dúvida de Alfred Hitchcock e Veludo Azul de David Lynch, na medida que mostra a camada podre por trás de uma cidadezinha interiorana dos Estados Unidos. Lana Turner é Constance MacKenzie, mulher viúva com uma filha adolescente (a inexpressiva Diane Varsi) e um passado misterioso. Logo ela se vê confrontada com a explosão sexual da jovem e também da trágica história da amiga adolescente que é abusada pelo padrasto. Muitos tapas, lágrimas, corridas escada acima e soluços em travesseiros se seguem nas duas horas e meia de filme. O maior predicado de A Caldeira do Diabo é fazer com que a história se mantenha interessante e não seja arrastada pela longa duração. Também se torna curioso ver assuntos tão polêmicos abordados no cinema dos anos cinqüenta, ainda que a execução deixe a desejar. Já uso do formato de tela larga CinemaScope não ajuda muito, pois os cenários têm aparência barata e parecem terem sido feitos para um programa de televisão.


Disponível em DVD pela Fox.


Sonho de Mulheres


Kvinnodröm, 1955 – Dirigido por Ingmar Bergman


Em uma produção do início de sua carreira, o diretor sueco examina um de seus temas favoritos: a psique da mente feminina. Mais uma vez o cinema de personagem do mestre domina, e examinamos o dia de duas mulheres de personalidades distintas, mas com problemas amorosos semelhantes. A jovem e superficial modelo Doris (Harriet Andersson) abandona o namorado pobre e se deixa encantar por um senhor de idade que lhe enche de presentes. Já a segura e profissional fotógrafa de moda Susanne (Eva Dalbeck) tenta dar continuidade ao caso que tinha com seu amante casado, apenas para ser puxada à realidade pela esposa do mesmo.


Como o título sugere, Sonho de Mulheres joga a luz sobre a alma feminina, sendo que os homens da história são figuras fracas que deixam seus destinos serem controlados pelas mulheres em sua volta (uma bela composição mostra o marido de costas para a câmera cercado pela esposa e amante em primeiro plano discutindo o seu futuro). Como é característico do diretor, o lado escuro da personalidade humana também é posto em envidência, expondo até mesmo a face sombria de suas protagonistas. Assim como a história, o filme é uma produção minimalista, sem o uso das composições ousadas que marcariam a obra de Bergman e sem mesmo apresentar uma trilha sonora. O que realmente prevalece é a maestria em sua direção de atores e o seu domínio sobre a forma cinematográfica. Um filme menor mas não menos importante.


Disponível em DVD pela Versátil Seleções.


Confissão do dia: Espero deixar a preguiça de lado e voltar a atualizar o blog frequentemente.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Rapidinhas: Hitchcock down under e Bergman autobiográfico


Sob o Signo de Capricórnio


Under Capricorn, 1949 – Dirigido por Alfred Hitchcock


Um dos filmes mais incomuns de Hitchcock por não se tratar de um suspense tradicional e sim um drama de época. Infelizmente, também é uma de suas produções menos atraentes. Baseado em um romance escrito por Helen Simpson, a história se desenrola na Austrália colonial de 1831. Em uma atuação que traz ecos de seu papel oscarizado em À Meia Luz, Ingrid Bergman é Lady Henrietta, a perturbada e alcoolizada esposa de um próspero ex-condenado irlandês (o sempre versátil Joseph Cotten) com má fama entre a elite australiana. O conflito se desenrola a partir da tentativa do sobrinho do governador (Michael Wilding) de ajudar a sofrida mulher a se livrar de seus tormentos do passado. O melodrama é uma escolha fora do usual para Hitch e, apesar da inserção de seus usuais elementos de suspense, as revelações que esses acarretam não deixam de atuar como um anticlímax (o mesmo pode ser dito do filme como um todo).


Sob o Signo de Capricórnio deu continuação aos experimentos com longos planos sequência iniciados com Festim Diabólico no ano anterior. Embora a fluidez com que Hitchcock mova sua câmera seja uma arte a parte (e belamente colocada em prática na cena bravura em que Bergman faz uma confissão sobre seu passado), é possível imaginar o quanto a narrativa letárgica teria se beneficiado da característica edição hitchcockiana. Em contrapartida, o diretor já mostra domínio sobre o uso da cor (este foi apenas seu segundo filme em Technicolor) para afetar emocionalmente o espectador e contribuir para a narrativa. Apesar de a produção ter sido um veículo para Ingrid Bergman, a estrela sueca é desbancada pelo desempenho restringido de Margaret Leighton como a inescrupulosa governanta Milly. Remetendo à Mrs. Danvers de Rebecca: A Mulher Inesquecível com sua paixão reprimida pelo seu mestre, a personagem pertence ao panteão dos grandes vilões de Hitchcock.


Sob o Signo de Capricórnio é mais um título de Hitchcock vítima das distribuidoras de fundo de quintal no Brasil. Existem duas versões em DVD no mercado: a primeira, lançada sob a infame Continental/Silver Screen, deve ter sido masterizada de um VHS como os demais títulos da distribuidora. A versão mais recente (e barata) foi lançada pela USA Filmes e, apesar de ser uma cópia da transferência do DVD americano, boa parte do áudio durante o filme está fora de sincronia com a imagem.


Fanny e Alexander


Fanny och Alexander, 1982 – Dirigido por Ingmar Bergman


A primeira cena de Fanny e Alexander introduz o menino do título (Bertil Guve) a contemplar um palco em miniatura vazio. Nós, no papel de espectadores, nos encontramos em uma espécie de ponto subjetivo, observando o personagem atrás das cortinas. Com este plano, Bergman estabelece um paradoxo que percorre ao longo do filme: seria o que se desenrola na tela fruto da imaginação supressa do protagonista ou realmente parte do universo real da narrativa?


Ao início do filme, contemplamos a vida feliz levada por Alexander e sua irmã mais nova Fanny (Pernilla Allwin) em meio a sua excêntrica família burguesa. Quando o pai das crianças morre inesperadamente, sua mãe se casa com o bispo de bom nome Edvard Vergerus (Jan Malmsjö), que leva a viúva e filhos para viverem em sua isolada residência. É amplamente conhecido o fato de Fanny e Alexander ser um reflexo da própria vida do diretor sueco, e estes elementos autobiográficos se fazem acentuados a partir do momento em que o padrasto começa a mostrar suas verdadeiras cores (o pai de Bergman era um clérigo estrito). No entanto, o filme também é uma fábula a certo ponto, com Bergman trazendo a tona os aspectos mais sombrios dos contos de fadas – e, de certa forma, a sua verdadeira cerne. A trajetória de Fanny e Alexander traz reflexos de João e Maria, desde sua sedução pela bruxa malvada em pele de cordeiro até sua épica fuga e libertação (neste caso, tanto de corpo quanto mente). Enquanto Alexander atravessa o processo catártico da narrativa, Fanny atua como observadora dos atos de selvageria sofridos pelo irmão – de fato, uma continuação poderia ser produzida apenas explorando os efeitos psicológicos sofridos pela menina.


Não apenas um pastiche de estilos, Fanny e Alexander também é uma alegoria de amadurecimento através do sofrimento, da libertação dos desejos mais profundos (não importando o quão impuro eles sejam) e também uma fábula de moral. Tudo isso suportado pelo costumeiro panache visual de seu diretor.


Fanny e Alexander foi lançado em DVD no Brasil pela distribuidora Versátil, mas se encontra fora de catálogo. Nos EUA recebeu tratamento especial da Criterion, estando disponível em sua versão de cinema de três horas e na versão do diretor (exibida na televisão como mini-série) com metragem de 312 minutos.


Confissão do dia: Bergman é exercício para a mente (e para interpretações pretenciosas também)

domingo, 31 de maio de 2009

Rapidinhas: na Itália com Bergman e na França com Kelly

Stromboli

Stromboli , 1950 – Dirigido por Roberto Rossellini

Um dos pais do neo-realismo italiano, Roberto Rossellini atingiu o ápice de sua carreira ao retratar nas telas a face sofrida de sua amada pátria no período do pós-guerra. Com Stromboli¸ o diretor usou as lentes de sua câmera para retratar outro caso real, mas em menor escala: o drama da atriz Ingrid Bergman. Coincidentemente ou não, muito dos eventos do filme refletem o que a estrela de Casablanca, então companheira de Rossellini, enfrentava na época. Bergman chocou o mundo ao deixar seu marido para assumir o caso com o diretor italiano, o que a tornou persona não grata na América. Ela se mudou para a Itália onde fez seis filmes com Rossellini, dentre os quais Stromboli é o primeiro.

Aqui Bergman interpreta Karin, uma jovem que, para fugir de um campo de concentração, se casa com um humilde pescador italiano (Mario Vitale) e vai morar na ilha vulcânica de Stromboli, ao norte da Sicília. Karin logo encontra uma série de dificuldades em sua nova vida, tendo que lidar com as barreiras do idioma e com a hostilidade do público local que a acusa de adultério - do mesmo modo que Bergman teve que se adaptar ao novo país e ainda fugir da perseguição da sociedade. As comparações não param por aí. Assim como sua personagem sai de um mundo de classe alta para uma vida de miséria (“de um extremo ao outro”, como ela diz), a atriz também trocou os estúdios de Hollywood por filmes rodados em locações feitos sob baixos orçamentos. No final das contas, a mudança lhe foi positiva. A Ingrid Bergman dirigida por Rossellini se desarma de alguns artifícios melodramáticos que marcam certas atuações suas em filmes americanos, criando uma caracterização mais naturalista que vai ao encontro do estilo dos demais atores de Stromboli (em sua grande maioria não profissionais). A falta de maquiagem e de iluminação artificial apenas contribui para realçar sua beleza natural.

Mesmo em um drama mais intimista, o diretor se mantém fiel aos dogmas do neo-realismo ao retratar a vida sofrida dos pescadores da ilha que, além da miséria ainda vivem sob a mercê da fúria da natureza. Ao lado do diretor de fotografia Otello Martelli, Rossellini captura em filme dois poderosos momentos: os pescadores exercendo seu ofício em alto mar e o poderoso vulcão em erupção. Mas no final das contas, o filme realmente pertence à Ingrid que, mesmo em um papel atípico e egoísta, não deixa difícil perceber o porquê de o diretor estar apaixonado por ela.

Disponível em DVD pela Versátil

Sinfonia de Paris

An American in Paris, 1951 – Dirigido por Vincente Minnelli

Vincente Minnelli pode ser considerado um dos principais responsáveis por elevar o gênero de filme musical ao status de arte. Ainda que não seja a melhor de suas obras (estas são Agora Seremos Felizes e Gigi), Sinfonia de Paris impressionou o bastante na época a ponto de levar seis estatuetas na noite do Oscar, incluindo a de Melhor Filme.

Escrito por Alan Jay Lerner (mais tarde responsável por Gigi e My Fair Lady), o roteiro de Sinfonia de Paris não escapa do arquétipo padrão de musicais da Metro: como perfeitamente descrito por Frank Sinatra em Isto Era Hollywood, “garoto conhece garota, garoto perde garota, garoto canta e consegue a garota.” Neste caso, o garoto é Jerry Mulligan (Gene Kelly), ex-soldado que agora se dedica à pintura na cidade das luzes. A garota é uma estreante Leslie Caron que, apesar de ter alcançado grande sucesso em outros filmes, aqui claramente demonstra não ter total consciência do que fazer quando não está dançando. O lado subversivo do romance é que, ao mesmo tempo em que vivem um affair, ambos vão para a cama de pessoas diferentes (ou assim subentende-se): ela para a de um cantor amigo de Jerry (Georges Guétary) e ele para a de uma mulher mais velha que patrocina sua arte (Nina Foch). Esta ruptura de caráter que faz do personagem de Kelly um semi-gigolô o torna mais interessante do que o tradicional “sujeito boa praça” interpretado pelo ator durante toda sua filmografia (e a decisão de vestir o bailarino em collants revela mais sobre o Minnelli do que pode ficar explícito na tela).

A história é, no entanto, apenas um pretexto para a apresentação de clássicas canções do vasto repertório de George Gershwin (incluindo “I Got Rhythm” e “S’ Wonderful”). Os números musicais possuem uma série de predicados próprios, embaladas pela sempre criativa coreografia de Kelly e pelo fantástico tato na direção de arte de Minnelli. De fato, torna-se tão fácil se deixar seduzir pelo seu “cinema dos sonhos” (como definiram os críticos da Cahiers du Cinema) e acabar suprimindo as falhas narrativas do filme. Mas o que fez Sinfonia de Paris realmente conquistar seu lugar na história do cinema foram os frenéticos dezoito minutos finais: uma sequência única de balé onde o casal revive sua história de amor utilizando pinturas de consagrados artistas impressionistas franceses como cenário. É neste momento em que o perfeito casamento da arte de Kelly e de Minnelli criam algumas das mais belas imagens já capturadas em película. Se a cena final é apressada e obviamente calculada é porque o diretor sabia que nada conseguiria superar aqueles momentos. Melhor mesmo é se retirar enquanto se está no topo.

Disponível em DVD simples no Brasil e em DVD e Blu-ray especiais nos EUA (com uma fantástica restauração), todos pela Warner

Confessão do dia 1: eu também me apaixonei por Ingrid Bergman

Confessão do dia 2: Gene Kelly e Leslie Caron dançando na fonte esfumaçada é uma das cenas mais sensuais do cinema

TEMPOS MODERNOS (1936)


Tempos Modernos

Modern Times (1936)
Dirigido por Charles Chaplin

“Levante a cabeça - nunca desista! Nós iremos nos virar!” diz Charles Chaplin ao final de Tempos Modernos, uma cena de caráter tão pungente quanto otimista, na medida em que o Vagabundo e sua companheira caminham em direção ao horizonte incerto. Infelizmente para Chaplin, Tempos Modernos selou o futuro do veículo que o trouxera fama mundial: o cinema mudo. Assistir ao filme não significa apenas presenciar o último suspiro de uma forma de arte extinta, mas também a última chance do público de ver o comediante encarnando seu personagem mais famoso, o eterno Vagabundo, que seria aposentado após esta produção (ainda que um barbeiro judeu em O Grande Ditador apresente mais do que uma leve semelhança com o Vagabundo). Assim como seu criador, o personagem teria problemas em se adaptar a um mundo onde as risadas deixam de ser a trilha sonora do humor e os efeitos sonoros ditam a ordem. Tempos Modernos representa Chaplin ao mesmo tempo em sua forma mais pura e sua forma mais política, esta última que seria favorecida em suas produções faladas nos anos a seguir.

A gênese de Tempos Modernos veio após um tour de dezoito meses feito por Chaplin através da Europa, onde conheceu personalidades, discutiu problemas sociais e expressou sua visão a respeito do uso das máquinas como algo a ser usado a favor do homem ou algo que poderia lhe trazer imensuráveis prejuízos. Ao voltar para os EUA, ele encontrou uma nação abatida pela Grande Depressão, onde o desemprego em massa crescia a cada dia e onde a máquina reinava sobre seus trabalhadores explorados e mal pagos. Embutido de uma temática política, cada fotograma de Tempos Modernos reflete o ponto de vista de Chaplin sobre a modernização das empresas, a produção em massa (uma crítica quase direta a Henry Ford), o desemprego e a luta do proletariado contra seus empresários capitalistas. Ainda que não assumindo totalmente uma face pró-marxista, seus ideais aqui representados certamente estabeleceram alguma relação com as acusações de comunismo que recebeu nos anos cinquenta, resultando em sua reclusão para a Europa.

Ao início de Tempos Modernos (“Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada – humanidade em busca da felicidade” dizem os créditos iniciais contrapostos a um relógio), um paralelo pouco sutil mostra a imagem de um rebanho de ovelhas em movimento sendo dissolvida na imagem de um grupo de trabalhadores marchando rumo ao trabalho. Numa das grandes empresas onde as máquinas reinam, um peculiar operário (Chaplin) tem a função de apertar porcas em uma linha de montagem em série. Supervisionando a produção, o presidente da companhia (Allan Garcia) faz uso de monitores gigantes espalhados pela fábrica para controlar seus empregados (o filme prevê o Big Brother com cerca de cinco décadas de antecedência). Explorado à exaustão, sendo até mesmo cobaia de um experimento em como alimentar funcionários de forma mais rápida, o pobre Vagabundo acaba sofrendo um colapso nervoso. Sendo engolido por uma das máquinas (em uma das cenas mais antológicas do cinema), o baixinho descontrolado se torna o responsável por uma série de incidentes que o levam diretamente para a prisão.

Atrás das grades, o agora desempregado trabalhador acaba acidentalmente se tornando um herói entre os policiais, recebendo sua própria cela e uma série de regalias. Já em outra parte da cidade, uma jovem pobre (Paulette Goddard, mais uma das inúmeras companheiras de Chaplin na vida real) rouba para alimentar seu pai e suas duas irmãs. Quando o patriarca da família é morto, ela se vê obrigada a fugir para escapar do juizado de menores. Solto da prisão por boas maneiras, o Vagabundo agora se encontra pelas ruas a procura de um emprego, sentindo falta de sua vida sem preocupações na cadeia. Em outra de uma série de coincidências, ele e a garota acabam se encontrando, vagando juntos em busca de um lar e de um trabalho.

Graças ao talento de seu criador, Tempos Modernos funciona em diversos níveis: além de ser uma carta de protesto de Chaplin colocada em celulóide, a obra demonstra ser não apenas eficaz crítica à industrialização, mas acima de tudo um ótimo entretenimento. Sendo exibido ainda hoje em escolas e programas de treinamento, o filme continua a ser relevante em tempos atuais, onde a globalização e a tecnologia são as principais causas do desemprego estrutural. Caracterizando os problemas sociológicos da década de 30, Tempos Modernos apresenta funcionários explorados por seus patrões, escravos de um sistema capitalista onde o relógio dita as ordens do dia. O imperialismo das máquinas não apenas colabora com o desemprego de um país em crise, mas também torna mecânico o trabalho de seus operários: em uma linha de montagem, o Vagabundo e seus companheiros são ordenados a passar horas diárias executando a mesma função repetidamente. As lacunas existentes entre as funções do homem e as funções da máquina se tornam cada vez mais abstratas a ponto de, em uma peculiar comparação, o pobre trabalhador ser engolido pela máquina onde trabalha, sendo arrastado por entre as engrenagens da mesma - o homem faz parte da máquina, mas a mesma não pode funcionar sem a mão humana. É curioso observar como o único papel da tecnologia no filme é extrair proveito dos indivíduos, a exemplo de quando o Vagabundo é obrigado a testar uma engenhoca que supostamente diminuiria o tempo de refeição dos operários.

Através de suas criações, Chaplin sempre teve o poder de estabelecer uma ligação direta com o grande público, sendo que quando Tempos Modernos foi produzido, este era composto em sua maioria por pessoas desempregadas ou então com grandes dificuldades financeiras. No caso dos personagens do filme, o caráter dos mesmos é muitas vezes definido por seu status quo: enquanto o presidente da companhia é um homem autoritário disposto a explorar seus trabalhadores ao máximo de suas forças, os assaltantes que roubam a loja de departamentos apenas o fazem por não terem o que comer. O roubo também é justificado através da personagem da menina das ruas, mais uma das páreas da sociedade que sofreu diretamente os efeitos da depressão. Interpretada com perspicácia por Paulette Godard, ela é a companheira ideal para Chaplin, responsável por muitos dos momentos tenros que são característicos da obra do diretor. No entanto, o que faz todas as críticas sociais funcionarem tão bem são suas intersecções com momentos de humor, instigando as percepções cognitivas do público sem subestimá-las. Assistir a este filme acompanhado de uma platéia é o bastante para atestar a eficiência do humor chaplinesco mais de setenta anos após seu lançamento original.

Produzido quase uma década após o advento de som no cinema, Tempos Modernos foi planejado originalmente como um filme falado. Chaplin, no entanto, resolveu ser fiel às suas origens, e ainda que o filme apresente uma trilha musical (composta por ele mesmo) e alguns efeitos sonoros, este é, em sua essência, um filme mudo. Como seus filmes futuros provariam, o cineasta não lidava tão bem com as palavras quanto lidava com uma narrativa baseada em intertítulos e diálogos sugeridos. Aqui, a dialética de Chaplin é demonstrada através do humor, não apresentando a necessidade dos discursos abertos e inflamados que veríamos no ótimo O Grande Ditador e no mediano Um Rei em Nova York. Apesar da tentação de dar voz ao personagem, uma versão falada do Vagabundo provavelmente não se mostraria verdadeira; Perderia sua qualidade universal através da barreira do idioma e também abstrairia a sua expressiva comunicação em pantomima. Deste modo, a única vez em que o Vagabundo possui voz neste ou qualquer outro filme é durante sua clássica apresentação como cantor no café, sendo que as letras da mesma são escritas em um idioma inexistente e incompreensível. É notável que, com exceção desta cena, os únicos momentos onde ouvimos diálogos no filme apresentam estes processados através de algum veículo eletrônico: o chefe da fábrica através do monitor, o vendedor eletrônico que apresenta a máquina de alimentação e um programa noticiário no rádio. Assim como esses aparelhos demonstram a opressão da tecnologia sobre o trabalhador e o homem comum, Chaplin (deliberadamente ou não) também sintetiza a soberania do som sobre o cinema mudo. Felizmente para o público, as obras de Chaplin teriam uma longevidade muito maior do que a arte que o consagrou.

Rapidinhas: a Espanha em Technirama, troca-troca disneyano e tormentos de Kubrick


El Cid
El Cid, 1961 – Dirigido por Anthony Mann

Produção baseada na lendária história do herói espanhol, El Cid faz parte do mesmo tecido dos grandes épicos hollywoodianos populares nas décadas de 50 e 60: filme de costumes, cenas de batalhas épicas, tela larga (neste caso em Technirama), trilha retumbante de Miklós Rósza e, é claro, Charlton Heston no papel principal. Ao mesmo tempo, o fato de ter sido filmado em locações reais na Europa e não em estúdios cria uma ruptura com grande parte do que havia sido produzido até então. El Cid dá continuidade à aproximação mais contemporânea às películas épicas iniciada com Ben-Hur de William Wyler e, especialmente, Spartacus de Stanley Kubrick. O uso de castelos verdadeiros e os detalhes minuciosos dados aos figurinos e cenários conferem um ar de autenticidade que se distanciam do colorido lona de circo e sensibilidade kitsch das obras de Cecil B. DeMille.

A parte intimista do filme também não deixa a desejar, com Charlton Heston em uma de suas interpretações “larger than life” de maior sucesso – o que é algo positivo, já que sua grande presença significa que o protagonista nunca se perde em meio ao escopo gigante da produção. Sophia Loren fica com o papel mais ingrato, sendo vitima da típica caracterização feminina da época. O romance do casal Rodrigo (o El Cid) e Gimenez (Loren) ajuda a dar maior peso dramático à narrativa (e era notável que os atores se odiavam durante as filmagens), mas o filme ganha vida mesmo durante as cenas de batalha. Orquestradas e enquadradas com maestria por Anthony Mann, as impressionantes tracking shots em meio a milhares de figurantes cavalgando à beira-mar nos levam a refletir o motivo de El Cid não ser tão lembrado quanto deveria.

Disponível em DVD em edições de distribuidoras duvidosas no Brasil e em uma ótima edição dupla nos EUA pela Miramax


Nascido para Matar
Full Metal Jacket¸ 1987 – Dirigido por Stanley Kubrick

A guerra do Vietnã é vista pela ótica de Kubrick em uma das obras mais marcantes já produzidas sobre o assunto. Nascido para Matar é obviamente dividido em dois atos – o primeiro, superior, mostra um grupo de recrutas da marinha sob o rigoroso treinamento fascista do Sgt. Hartman (em fantástica interpretação de R. Lee Ermey). Algo incomum em sua obra, Kubrick cria um personagem que estabelece uma relação direta com o espectador através do malfadado soldado Pyle (Vincent D'Onofrio). Seu sofrimento e sentimento de exclusão preparam o terreno para a segunda parte da narrativa, na qual vemos as máquinas de matar na qual os recrutas foram transformados.

Enquanto a segunda metade da película acabe muitas vezes caindo no lugar comum de tantos outros filmes de guerra (propulsionado também pela falta de um protagonista marcante), o desenrolar dos momentos finais é especialmente impactante. A vertente de Kubrick ainda se mostra neutra, mostrando os efeitos devastadores do conflito (mais em termos psicológicos do que físicos), mas evitando criar uma obra condescendente ou moralista.

Disponível em DVD e Blu-ray pela Warner

Se eu Fosse a Minha Mãe
Freaky Friday, 1976 – Dirigido por Gary Nelson

Comédia da Disney que ganhou uma refilmagem em 2003 com Jamie Lee Curtis e Lindsay Lohan. Um dos filmes mais simpáticos produzidos sob a problemática gestão de Ron Miller nos anos seguintes à morte de Walt, mostra a já clichê história de troca de corpos entre mãe (Barbara Harris) e filha (uma Jodie Foster com 13 anos de idade).

Como esperado para o padrão Disney de filmes família dá época, a produção é extremamente leve, apelando muitas vezes para um tipo de humor campy e pastelão que estariam mais em casa em um filme de Charles Chaplin. Ainda assim, demonstra a vontade do estúdio de conectar com uma platéia adolescente ao abordar a relação da filha pré-adolescente rebelde e da mãe super exigente. Não obstante, ainda há um lado perverso no momento em que a filha no corpo da mãe começa a dar em cima do vizinho de 16 anos e a receber cantadas do marido (no caso, seu pai). As boas atuações da dupla principal fazem com que o filme segure as pontas até o fim, especialmente Barbara Harris, que parece se divertir muito no papel. Totalmente supimpa.

Disponível em DVD pela Buena Vista

Confissão do dia 1: encontrar elementos subversivos em filmes para família me fascina (e não, nada de mensagens subliminares)

Confissão do dia 2: quem diria que escutar um sargento obviamente privado de qualquer tipo de relacionamento social (...) vociferar uma enciclopédia de obscenidades poderia ser tão divertido

terça-feira, 26 de maio de 2009

MEU TIO (1958)

Meu Tio
Mon Oncle (1958)
Dirigido por Jacques Tati

Assim como a imagem de Charles Chaplin ficou eternizada no consenso popular através do personagem Vagabundo e seus característicos bigode, bengala e chapéu, a primeira relação que pode ser feita ao nome de Jacques Tati é de uma figura alta, de cachimbo e chapéu, vestindo um longo casaco e com um peculiar modo de caminhar. Não se trata de uma descrição do ator e diretor francês, mas sim de seu personagem, o Sr. Hulot, que fez sua primeira aparição no filme As Férias do Sr. Hulot de 1953. Meu Tio, o filme subsequente do diretor, apresenta o retorno do cômico personagem, desta vez entrando em conflito com a cultura consumista importada dos EUA que invadiu a França no período pós-guerra.

Seguindo a linhagem de Chaplin, que produzia obras com um viés político e social, através de Meu Tio Tati exerce uma crítica à modernização, à perda de valores interpessoais e à criação de uma sociedade hedonista que busca o prazer através do consumo. Se com Tempos Modernos Chaplin mostrou como a industrialização estava levando o homem à alienação social, Meu Tio mostra os resultados desta época. Caracterizando os frutos desta sociedade pós-moderna, o filme nos apresenta a família Arpel, composta pelo Sr. e a Sra. Arpel (Jean-Pierre Zola e Adrienne Servatie) e seu jovem filho Gerard (Alain Becourt). Localizados em um bairro de classe alta do subúrbio de Paris, os Arpel vivem em uma residência cuja construção poderia ter sido extraída diretamente de um catálogo de Art Déco: uma enorme mansão composta por vastos cômodos, uma garagem de porta mecanizada, uma vasta fachada com um jardim cercado por altos muros e, o símbolo máximo da ostentação, uma fonte em formato de peixe que a Sra. Arpel se orgulha em exibir aos visitantes. Todas as manhãs, o Sr. Arpel dirige o pequeno Gerard para a escola a caminho do trabalho, enquanto a matriarca mecanicamente cuida dos serviços domésticos. É curioso perceber como, logo na abertura do filme, Tati nos introduz a um mundo onde tudo é imaculadamente perfeito na superfície, a começar pela família amorosa que poderia ter saído de um filme norte-americano cercada passado pela casa de aparência estéril na qual a sra. Arpel metodicamente se preocupa com os mínimos detalhes em relação a limpeza da residência e do carro do marido. Mais tarde ficamos sabendo, no entanto, que Gerard é considerado uma “criança problema” por seus pais, pois não se preocupa com os padrões ditados pela família e dá maior atenção às brincadeiras do que aos estudos.

Em um bairro mais humilde da cidade, mas onde o charme e a simplicidade da velha França ainda não cederam à modernização, encontra-se o Sr. Hulot (Tati), irmão da Sra. Arpel. Contrastando com a moradia perfeita da irmã, ele vive em uma vila onde os moradores moram próximos uns aos outros e inevitavelmente se cumprimentam todas as manhãs; onde o gari varre as ruas e conversa incessantemente com o ocasional pedestre e onde as pessoas se unem ao redor das barracas de frutas e legumes para não perderem a última oferta da feira. Em um dos melhores planos do filme, vemos o grande sobrado onde o sr. Hulot reside e o caminho que ele percorre até chegar ao seu apartamento no último andar: ele caminha através de apartamentos alheios, sobe lances de escada e ainda no caminho encontra diversos vizinhos. Uma de suas principais distrações é o simples ato de ajustar a vidraça da janela para que o reflexo do sol faça o passarinho da gaiola do vizinho cantar.

Naquele dia, o Sr. Hulot ficou encarregado de tomar conta do sobrinho. Após buscá-lo na escola, ele leva Gerard para um passeio nos arredores de seu bairro. Logo fazendo amizade com as crianças locais, o menino descobre o prazer de atividades simples como comer doce do vendedor da rua e fazer brincadeiras como distrair os pedestres na rua para que estes caminhem de encontro a um poste. Gerard vê então em seu tio uma válvula de escape do estilo de vida de seus pais, tendo a oportunidade de ser uma criança como as demais. Utilizando o menino como ponte, Tati retrata na tela o exacerbado contraste entre o mundo do Sr. Hulot e do casal Arpel. Assim como o tio, Gerard se sente uma figura estranha em sua própria casa. O cotidiano de seus pais representa a idéia do simulacro, onde a simulação de uma realidade mais fácil e mais moderna é mais atraente do que a verdadeira realidade. “Os homens criam as ferramentas: estas, por sua vez, recriam os homens” afirmou o filósofo Marshall McLuhan em um de seus diversos estudos sobre a comunicação. Tal pensamento se estende ao comportamento dos personagens da alta classe de Meu Tio, pois as regras de sua conduta são ditadas pelas ferramentas ao seu redor. A casa dos Arpel, por exemplo, é equipada com a mais variada sorte de objetos e ornamentos eletrônicos que supostamente deveriam simplificar a vida de seus moradores, mas que apenas os mantém mais afastados. A casa em si atua como outro personagem do filme: um ser grande e imponente, cujas janelas nos andares superiores assemelham-se a dois grandes olhos que observam os habitantes. Não obstante, a casa ganha parece ganhar vida própria, chegando ao ponto de aprisionar seus donos na garagem em uma das cenas mais cômicas da película.

Com a finalidade de demonstrar mais agudamente como as relações são prejudicas pela intervenção tecnológica, Jacques Tati investe em cenas relativamente longas demonstrando o cotidiano dos moradores do bairro do Sr. Hulot. De forma natural, as pessoas conversam, fofocam, brigam, xingam, mas, acima de tudo, confraternizam e se divertem juntas. Cercados por altos muros, as relações do casal Arpel com o mundo esterno se resumem aos amigos de trabalho do marido e à vizinha de classe alta que acabara de se mudar. As relações burguesas são formadas por jogos de aparências, conversas superficiais, sorrisos falsos e laços emocionais arranjados. Assim como o Vagabundo de Chaplin se sente desconfortável em meio às engrenagens e ao maquinário das fábricas, o Sr. Hulot se sente recuado entre este meio que não lhe é familiar. Consequentemente, a tentativa da Sra. Arpel de unir o irmão com a vizinha e de lhe dar um cargo na empresa do marido falham terrivelmente. Ao invés de criar peças específicas, Tati aproveita tais situações para injetar a fita com seu característico humor. Abolindo quase totalmente o uso de closes no filme, o diretor mostra a preferência por planos abertos, o que dá valor à figura peculiar de seu personagem e nos mantém distantes da fatia mais fria e impessoal do mundo de Meu Tio. Assim como Chaplin, Keaton e Laurel e Hardy, Tati faz uso de um humor visual, favorecendo a ação e a linguagem universal da pantomima sobre os diálogos. Estes, por sua vez, não possuem um grande papel no filme, dando espaço ao criativo uso do design de som: os efeitos sonoros das cenas ambientadas em meio à classe alta são mecânicos e artificiais, contrastando com os sons naturais e orgânicos do subúrbio.

Ao início de Meu Tio, os créditos da produção são dispostos em placas de construção, com imagens das obras de um prédio sendo usada como pano de fundo. A seguir, o título do filme aparece escrito em uma parede do bairro do Sr. Hulot. O que Jacques Tati quis dizer com esta justaposição de imagens, supõe-se, é que lugares como este pequeno subúrbio e os estilos de vida que os acompanham estão sendo cada vez mais cercados e substituídos por grandes edifícios e corporações. O que era ainda um período de transição em 1958 atualmente é uma realidade cultural, o que apenas contribui para confirmar a resonância e contemporaneidade da obra.