domingo, 31 de maio de 2009

TEMPOS MODERNOS (1936)


Tempos Modernos

Modern Times (1936)
Dirigido por Charles Chaplin

“Levante a cabeça - nunca desista! Nós iremos nos virar!” diz Charles Chaplin ao final de Tempos Modernos, uma cena de caráter tão pungente quanto otimista, na medida em que o Vagabundo e sua companheira caminham em direção ao horizonte incerto. Infelizmente para Chaplin, Tempos Modernos selou o futuro do veículo que o trouxera fama mundial: o cinema mudo. Assistir ao filme não significa apenas presenciar o último suspiro de uma forma de arte extinta, mas também a última chance do público de ver o comediante encarnando seu personagem mais famoso, o eterno Vagabundo, que seria aposentado após esta produção (ainda que um barbeiro judeu em O Grande Ditador apresente mais do que uma leve semelhança com o Vagabundo). Assim como seu criador, o personagem teria problemas em se adaptar a um mundo onde as risadas deixam de ser a trilha sonora do humor e os efeitos sonoros ditam a ordem. Tempos Modernos representa Chaplin ao mesmo tempo em sua forma mais pura e sua forma mais política, esta última que seria favorecida em suas produções faladas nos anos a seguir.

A gênese de Tempos Modernos veio após um tour de dezoito meses feito por Chaplin através da Europa, onde conheceu personalidades, discutiu problemas sociais e expressou sua visão a respeito do uso das máquinas como algo a ser usado a favor do homem ou algo que poderia lhe trazer imensuráveis prejuízos. Ao voltar para os EUA, ele encontrou uma nação abatida pela Grande Depressão, onde o desemprego em massa crescia a cada dia e onde a máquina reinava sobre seus trabalhadores explorados e mal pagos. Embutido de uma temática política, cada fotograma de Tempos Modernos reflete o ponto de vista de Chaplin sobre a modernização das empresas, a produção em massa (uma crítica quase direta a Henry Ford), o desemprego e a luta do proletariado contra seus empresários capitalistas. Ainda que não assumindo totalmente uma face pró-marxista, seus ideais aqui representados certamente estabeleceram alguma relação com as acusações de comunismo que recebeu nos anos cinquenta, resultando em sua reclusão para a Europa.

Ao início de Tempos Modernos (“Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada – humanidade em busca da felicidade” dizem os créditos iniciais contrapostos a um relógio), um paralelo pouco sutil mostra a imagem de um rebanho de ovelhas em movimento sendo dissolvida na imagem de um grupo de trabalhadores marchando rumo ao trabalho. Numa das grandes empresas onde as máquinas reinam, um peculiar operário (Chaplin) tem a função de apertar porcas em uma linha de montagem em série. Supervisionando a produção, o presidente da companhia (Allan Garcia) faz uso de monitores gigantes espalhados pela fábrica para controlar seus empregados (o filme prevê o Big Brother com cerca de cinco décadas de antecedência). Explorado à exaustão, sendo até mesmo cobaia de um experimento em como alimentar funcionários de forma mais rápida, o pobre Vagabundo acaba sofrendo um colapso nervoso. Sendo engolido por uma das máquinas (em uma das cenas mais antológicas do cinema), o baixinho descontrolado se torna o responsável por uma série de incidentes que o levam diretamente para a prisão.

Atrás das grades, o agora desempregado trabalhador acaba acidentalmente se tornando um herói entre os policiais, recebendo sua própria cela e uma série de regalias. Já em outra parte da cidade, uma jovem pobre (Paulette Goddard, mais uma das inúmeras companheiras de Chaplin na vida real) rouba para alimentar seu pai e suas duas irmãs. Quando o patriarca da família é morto, ela se vê obrigada a fugir para escapar do juizado de menores. Solto da prisão por boas maneiras, o Vagabundo agora se encontra pelas ruas a procura de um emprego, sentindo falta de sua vida sem preocupações na cadeia. Em outra de uma série de coincidências, ele e a garota acabam se encontrando, vagando juntos em busca de um lar e de um trabalho.

Graças ao talento de seu criador, Tempos Modernos funciona em diversos níveis: além de ser uma carta de protesto de Chaplin colocada em celulóide, a obra demonstra ser não apenas eficaz crítica à industrialização, mas acima de tudo um ótimo entretenimento. Sendo exibido ainda hoje em escolas e programas de treinamento, o filme continua a ser relevante em tempos atuais, onde a globalização e a tecnologia são as principais causas do desemprego estrutural. Caracterizando os problemas sociológicos da década de 30, Tempos Modernos apresenta funcionários explorados por seus patrões, escravos de um sistema capitalista onde o relógio dita as ordens do dia. O imperialismo das máquinas não apenas colabora com o desemprego de um país em crise, mas também torna mecânico o trabalho de seus operários: em uma linha de montagem, o Vagabundo e seus companheiros são ordenados a passar horas diárias executando a mesma função repetidamente. As lacunas existentes entre as funções do homem e as funções da máquina se tornam cada vez mais abstratas a ponto de, em uma peculiar comparação, o pobre trabalhador ser engolido pela máquina onde trabalha, sendo arrastado por entre as engrenagens da mesma - o homem faz parte da máquina, mas a mesma não pode funcionar sem a mão humana. É curioso observar como o único papel da tecnologia no filme é extrair proveito dos indivíduos, a exemplo de quando o Vagabundo é obrigado a testar uma engenhoca que supostamente diminuiria o tempo de refeição dos operários.

Através de suas criações, Chaplin sempre teve o poder de estabelecer uma ligação direta com o grande público, sendo que quando Tempos Modernos foi produzido, este era composto em sua maioria por pessoas desempregadas ou então com grandes dificuldades financeiras. No caso dos personagens do filme, o caráter dos mesmos é muitas vezes definido por seu status quo: enquanto o presidente da companhia é um homem autoritário disposto a explorar seus trabalhadores ao máximo de suas forças, os assaltantes que roubam a loja de departamentos apenas o fazem por não terem o que comer. O roubo também é justificado através da personagem da menina das ruas, mais uma das páreas da sociedade que sofreu diretamente os efeitos da depressão. Interpretada com perspicácia por Paulette Godard, ela é a companheira ideal para Chaplin, responsável por muitos dos momentos tenros que são característicos da obra do diretor. No entanto, o que faz todas as críticas sociais funcionarem tão bem são suas intersecções com momentos de humor, instigando as percepções cognitivas do público sem subestimá-las. Assistir a este filme acompanhado de uma platéia é o bastante para atestar a eficiência do humor chaplinesco mais de setenta anos após seu lançamento original.

Produzido quase uma década após o advento de som no cinema, Tempos Modernos foi planejado originalmente como um filme falado. Chaplin, no entanto, resolveu ser fiel às suas origens, e ainda que o filme apresente uma trilha musical (composta por ele mesmo) e alguns efeitos sonoros, este é, em sua essência, um filme mudo. Como seus filmes futuros provariam, o cineasta não lidava tão bem com as palavras quanto lidava com uma narrativa baseada em intertítulos e diálogos sugeridos. Aqui, a dialética de Chaplin é demonstrada através do humor, não apresentando a necessidade dos discursos abertos e inflamados que veríamos no ótimo O Grande Ditador e no mediano Um Rei em Nova York. Apesar da tentação de dar voz ao personagem, uma versão falada do Vagabundo provavelmente não se mostraria verdadeira; Perderia sua qualidade universal através da barreira do idioma e também abstrairia a sua expressiva comunicação em pantomima. Deste modo, a única vez em que o Vagabundo possui voz neste ou qualquer outro filme é durante sua clássica apresentação como cantor no café, sendo que as letras da mesma são escritas em um idioma inexistente e incompreensível. É notável que, com exceção desta cena, os únicos momentos onde ouvimos diálogos no filme apresentam estes processados através de algum veículo eletrônico: o chefe da fábrica através do monitor, o vendedor eletrônico que apresenta a máquina de alimentação e um programa noticiário no rádio. Assim como esses aparelhos demonstram a opressão da tecnologia sobre o trabalhador e o homem comum, Chaplin (deliberadamente ou não) também sintetiza a soberania do som sobre o cinema mudo. Felizmente para o público, as obras de Chaplin teriam uma longevidade muito maior do que a arte que o consagrou.

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